Carlos “Baiano” Ferrer
Raramente publico textos de outras pessoas aqui neste Blog. A ideia é publicar sempre textos de minha autoria, mas, ao mesmo tempo, é impossível não reproduzir bons textos. Excepcionalmente, reproduzo um texto do camarada Carlos “Baiano” Ferrer, com quem troco impressões sobre as editorias de futebol e política. O texto “O menino e o Rei Pelé” é mais uma obra que merece, um dia, estar num livro de crônicas do autor.
“O Menino e o Rei Pelé”
A chegada do verão sempre animava os proprietários de parques de diversão, que se juntavam para montar na praia do Gonzaga, em Santos, um quilômetro de entretenimento. Do trem fantasma à barraca da maçã do amor – ali, o povo mambembe esperava os paulistanos, que desciam a Via Anchieta, e os gringos do maior porto brasileiro, em um tempo em que o Brasil era o país que mais crescia no mundo.
O verão de 1972 foi inesquecível. O Brasil, em comemoração aos 150 anos da Independência, patrocinou e ganhou a “Minicopa” ( Torneio da Independência ) com Tostão vestindo a camisa de número 10, que era do Rei – aposentado um ano antes. A Portela vinha com o samba Ilu Ayê falando de amor e escravidão, mas que acabou ficando em terceiro lugar; Fernando Pinto ganhou seu primeiro carnaval com uma linda homenagem à Carmen Miranda.
O cronista, que vivera sua adolescência em um parque de diversão, nesse verão comandava um moderno Tiro ao Alvo, com armas automáticas de 85 tiros da saudosa Indústria Fionda, uma empresa fundada por italianos na Freguesia do Ó, em São Paulo, e que viria a modernizar os parques brasileiros.
Trabalhava comigo nessa barraca um estivador aposentado que se chamava Ulisses, e que se dizia amigo do Rei Pelé desde os primórdios de sua carreira, no Santos. Ulisses simpatizou com aquele menino do parque de apenas 16 anos, e lhe ensinava como atender os marinheiros que ali passavam e pouco sabiam de português.
No último domingo da temporada, Ulisses me disse que tinha marcado com Pelé de tirar umas fotos comigo na Vila Belmiro. No dia seguinte, lá fomos nós encontrar o Rei. Ulisses foi entrando pela Vila Belmiro como se estivesse em casa, com todos os funcionários o cumprimentando.
Quando chegamos ao pequeno vestiário, todo pintado de branco, com uma arquibancada de cimento de cada lado, tomei um susto: vi meu ídolo Edu calçando as chuteiras. Logo à frente, havia uma escada de 3 degraus e, à direita, um minúsculo cômodo com uma pequena mesa e uma cadeira: lá estava sentado o Rei.
Pelé, quando viu Ulisses, deu um grito: ” Ulisses, esqueci a minha câmera ! “
” Eu trouxe a minha, Pelé. ” – respondeu Ulisses.
Pelé pegou a câmera, olhou e disse: ” isso não funciona. “_
” Funciona sim. ” – respondeu meu amigo.
Pelé balançou a cabeça como se não acreditasse muito, mas aceitou, e me abraçou. Descemos a escada, e depois de passarmos pelos jogadores, entramos no gramado da Vila Belmiro. Era um dia nublado. Ulisses, como um fotógrafo, ia tirando suas fotos. Pelé me abraçava com carinho, e pude perceber que Pelé de fato tinha muita estima pelo estivador. Acabada a sessão de fotos, falei para Pelé que com aquelas fotos iria até arrumar umas namoradas em Vitória, no Espírito Santo – o próximo destino do parque.
” E eu? ” – perguntou o craque.
” Você também, pois vai estar nas fotos. ” – respondi. E o Rei deu uma bela risada. Foi a última vez que vi Ulisses. Em Vitória, mandei revelar as fotos, mas Pelé tinha razão: todas as fotos saíram estragadas. Chorei de tristeza.
Depois de ter sido tratado com carinho e respeito pelo Rei, na Vila Belmiro, sai de lá confiante e com a certeza de que iria driblar todos os percalços que a vida poderia me impor. Que iria chutar para longe todos os complexos que a vida reserva aos menos favorecidos, porque o Rei inflou ainda mais o coração leonino, e depois daquele dia, o céu passou a ser o limite.
Rei, vou tentar fazer chegar até você essa história. Para que, neste momento de recuperação, você possa relembrar e matar a saudade do seu amigo Ulisses. E para dizer ao Rei que, namoradas, mesmo sem as fotos, consegui muitas. Já o amor, é mais difícil que marcar um gol de placa(*).
O amor, Rei, às vezes encontra (en)traves que impedem o balançar das redes dos nossos sonhos. O amor é como uma retranca que temos que ter paciência para penetrar, pois o amor é o gol mais bonito que se pode marcar.
Belo Horizonte, 3 de outubro de 2021.
Força, Rei !
Acredito que, desse modo, ao reproduzir esta belíssima crônica, homenageio o “Rei Pelé” e o amigo cruzeirense Carlos Baiano Ferrer.
Força, meu Rei !
(*) Originalmente, o texto dizia “gol de bicicleta”. “Gol de placa” é aquele que merece uma placa na entrada do estádio. Em outras palavras, é um gol em que o torcedor faria questão de sair do estádio e pagar outra entrada.
P. S.
Carlos “Baiano” Ferrer é um artista, cruzeirense. Conhecido nas Alterosas como “Baiano das Camisetas”, é um estilista que atua na loja “Nobres Pecadores“. Escreve suas crônicas nos jornais do bairro Castelo (impresso e online). Publica histórias da vida real, ornamentadas com a vida circense.
Imagem : Reprodução Pinterest
Nota do Autor
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