Entre sem bater - Apeles de Kos - O Ultracrepidário

Entre sem bater – Apeles de Kos – O Ultracrepidário

Entre sem Bater

Este é um texto da série “Entre sem bater” ( Uma leitura, acima de tudo, “obrigatória”). A cada texto, uma frase, citação ou similar, que nos levem a refletir. É provável que muitas destas frases sejam do conhecimento dos leitores, mas deixaremos que cada um se aproprie delas. Entretanto, algumas frases e seus autores podem surpreender a maioria dos leitores. Apeles de Kos, se vivesse atualmente, teria sérios problemas com todo tipo de “Ultracrepidário” que abunda nas redes sociais.

Cada publicação terá reprodução, resumidamente, nas redes sociais Pinterest, Facebook, Twitter, Tumblr e, eventualmente, em outras isoladamente. Uma adaptação textual, com redução, pode ter publicação em sites e outros blogs, como o “Recanto das Letras“.

As frases com publicação aqui têm as mais diversas origens. Com toda a certeza, algumas delas estarão com autoria errada e sem autor com definição. Assim sendo, contamos com a colaboração de todos de boa vontade, para indicar as correções.

Na maioria dos casos, são frases provocativas e que, surpreendentemente, nos dizem muito em nosso cotidiano. Quando for uma palavra somente, traremos sua definição. Em caso de termos ou expressões peculiares, oferecemos uma versão particular. Os comentários em todas as redes sociais podem ter suas respostas em cada rede e/ou com reprodução neste Blog.

Apeles de Kos

Diz a lenda, sim, tudo que vem da antiguidade pode ter tratamento de mito ou lenda, que Apeles existiu e era bom no que fazia. Entretanto, sua frase transformou-se em provérbio, nas palavras de Plínio, o Velho. É provável que este provérbio grego não tenha uma recepção amável pela maioria dos habitantes do mundo virtual. Muitos dicionários, inclusive, resistem a adicionar a palavra ultracrepidário e suas acepções.

Apeles, (nasceu no século IV a.C.). Foi um pintor grego helenístico cujo trabalho foi tido em tão alta estima pelos antigos escritores de arte que ele continua a ser considerado, embora nenhuma de suas obras tenha sobrevivido, como o maior pintor da antiguidade. Quase tão pouco se sabe sobre a vida de Apeles quanto sobre sua arte. Ele era de origem jônica, mas tornou-se aluno da célebre escola dórica de Sicyon, no sul da Grécia, onde trabalhou com o pintor Pânfilo. Diz-se que suas obras combinaram a meticulosidade dórica com a graça jônica. Tornou-se o reconhecido pintor da corte de Filipe II da Macedônia e seu filho Alexandre III, o Grande. Sua foto de Alexandre segurando um raio foi classificada entre suas obras mais notáveis. De todas as suas obras nenhuma cópia sobreviveu; as descrições delas, no entanto, inspiraram artistas posteriores a imitá-las, especialmente durante o Renascimento italiano.

Fonte: Britannica (Inglês)

O Ultracrepidário

A ideia central do comportamento de um ultracrepidário é que ele rompe os limites daquilo que as pessoas julgam que ele sabe ou não. Em outras palavras, medimos as pessoas com nossas réguas e não aceitamos opiniões que não nos agradem. Pode parecer que estou falando dos grupos em redes sociais, entretanto, estou reproduzindo um provérbio grego.

Plínio, o velho, transformou uma frase justa e sensata, em um provérbio que desvirtuou-se nas redes sociais.

Atualmente, ninguém respeita este provérbio. Por isso, trazemos a lenda de Apeles para os tempos modernos, das redes sociais, sob domínio do ultracrepidário moderno.

O sapateiro moderno

Numa pequena cidade moderna, cujos habitantes possuem profissões ultramodernas, vive uma talentosa artista chamada Irene(*). Suas obras eram, na maioria dos casos, de notável perfeição e elegância. A fama de Irene se espalhou rapidamente, atraindo admiradores de todos os cantos. No entanto, assim como aconteceu com Apeles na Grécia Antiga, também aconteceu com um influenciador local. Diógenes(*), que possui milhões de seguidores, tornou-se um crítico ferrenho das obras de Irene.

Surpreendentemente, tudo começou em uma exposição de arte local, onde Irene exibia sua mais recente obra-prima. A partir de um provérbio grego, Irene intitulou sua pintura “Ne sutor ultra crepidam“, retratando uma cena do cotidiano contemporâneo. A obra apresentava um influenciador em seu trabalho, meticulosamente criando uma dancinha sem sentido e sem conteúdo sobre sandálias. O detalhe é que a expressão na pintura era tão notável que os espectadores ficaram maravilhados.

Diógenes, um influenciador ultracrepidário, decidiu visitar a exposição e não pôde deixar de comentar sobre a pintura de Irene.

Ele se aproximou, examinou a obra e, com um sorriso irônico, disse em voz alta com publicação instantânea no “Instagram”.

“Bonito trabalho, Irene, mas esse  daí não tem jeito para criar uma dancinha viral sobre sandálias. Veja como ele está deixando os pés fora dos passinhos e em desalinhamento com a sandália

Os presentes riram, pensando que Diógenes estava apenas fazendo uma piada leve. No entanto, o influenciador continuou sua crítica, apontando detalhes minuciosos na pintura que eram, supostamente, erros crassos.

Crítico Fugaz

Irene, mantendo a compostura, agradeceu pelo feedback e convidou Diógenes a examinar suas outras obras.

O influenciador, agora confiante em sua “expertise” artística, visitou o estúdio de Irene no dia seguinte. Ele caminhou pelos corredores adornados com diversas pinturas, cada uma representando diferentes aspectos da vida moderna. Ao chegar à obra-prima de Irene, Diógenes não conseguiu resistir à tentação de fazer comentários.

Irene, amiga, esta pintura é magnífica, mas veja esse guarda-chuva na mão daquela senhora. Eu posso até não entender muito de pintura, mas eu sei quando uma alça de guarda-chuva está malfeita. Não vá você além das sandálias, minha cara!

Irene, mantendo sua paciência, explicou que o foco da pintura era o retrato da vida cotidiana. Desse modo, detalhes menores e questiúnculas de somenos podem ter interpretações diferentes. Mas Diógenes insistiu na busca por falhas imaginárias nas obras de Irene. Desta forma, avaliou desde a textura de uma maçã até a sombra em um banco de praça, como se isso importasse.

A crítica deve sempre ter uma boa recepção, e mesmo um influenciador sem qualificação pode ter algum conhecimento para fazê-la. Entretanto, as atuais redes sociais deram a qualquer “idiota da aldeia” o “poder” de falar do que bem entender, sem tramelas. Toda e qualquer crítica merece respeito(1), mesmo contendo sarcasmo ou ironia.

Aplauso Tolo

A notícia da crítica incessante do sapateiro moderno espalhou-se pela cidade, e as pessoas começaram a se divertir com a situação. Diógenes, agora conhecido como o “crítico de arte sapateiro“, tornou-se uma atração por si só e recebeu aplausos de seus seguidores. As exposições de Irene passaram a ter grande presença de curiosos, ansiosos para ouvir as críticas hilárias do ultracrepidário parlapatão(2).

A ironia atingiu o ápice quando Irene decidiu criar uma pintura que representasse a própria situação. Ele retratou Diógenes examinando uma de suas obras, apontando com seriedade para um pequeno detalhe na borda de uma nuvem. A pintura recebeu o título de “O crítico incansável“, e mais uma vez, as redes sociais aplaudiram a perspicácia de Irene.

A história entre Irene e Diógenes continuou por algum tempo, com ele se tornando uma figura folclórica nas redes sociais e ganhando muito dinheiro. Eventualmente, Diógenes percebeu que suas críticas não recebiam atenção dos verdadeiros amantes da arte. Assim sendo, ele decidiu abandonar suas incursões no mundo da crítica de arte.

Irene continuou a criar suas obras magníficas, e sua reputação como uma talentosa artista perdurou, até o surgimento de outro ultracrepidário.

A lição, no entanto, está em debate: cada um deve ficar em sua especialidade, e nem mesmo um sapateiro deve ir além das sandálias?

A Crítica e o Crítico

Desde que Apeles ouviu a crítica do sapateiro e mudou sua pintura, até os tempos atuais, muita coisa mudou. Como se não bastasse, seu pensamento serviu de base para criação de um termo: o ultracrepidário, mesmo que alguns filólogos resistam.

Entretanto, como as relações entre críticos e alvos da crítica evoluíram, todos deveriam aceitar que nem sempre o sapateiro entende somente de sandálias. É incompreensível que a maioria das pessoas se comportem de maneira pior que Apeles em relação aos críticos das redes sociais.

Os nomes Irene e Diógenes servem para ilustrar os comportamentos antagônicos e a posição de um ultracrepidário atualmente. Com toda a certeza, em várias ocasiões somos um pouco críticos ultracrepidarianos. A ideia de que a crítica deve ser construtiva tem, quase sempre, origem naqueles que não as aceitam.

A frase descrita por Plínio, o velho, numa atribuição de autoria a Apeles, transformou-se numa arma daqueles que não são flexíveis. A estória cuja narração transpõe séculos do que seria uma evolução da humanidade, é lapidar. Mostra, sem dúvida, que não estamos aprendendo muito e mantemos nossos preconceitos e a arrogância é bidirecional.

Um ultracrepidário é, para muitas pessoas, alguém inconveniente. Uma pessoa que desobedece regras e regulamentos com fundamentos e racionalidade. Por outro lado, alguns o veem como alguém presunçoso que oferece conselhos ou opiniões além da esfera do conhecimento. Enquanto isso, milhões de pessoas pagam para sustentar influenciadores, suas opiniões e uma visão superficial do mundo.

C´est la vie !

Enfim, a informação e o conhecimento, que deveriam ser de todos, desrespeita a necessidade de ouvir mais críticas e aceitá-las. Ser um ultracrepidário, em tempos de redes sociais, transformou-se num risco à própria existência, a arrogância do saber está no comando.

Estamos tentando mudar o mundo moderno das redes sociais, e “Amanhã tem mais …

P. S.

(*) Irene: vem do grego “eiréne”, que significa “paz”. Pode indicar uma pessoa que busca a harmonia, mas também pode ser intolerante com quem a perturba.

(*) O filósofo que mais representou o movimento denominado Cinismo foi Diógenes de Sinope(3). Ele foi discípulo de Antístenes, o fundador do Cinismo, e ficou famoso por seu comportamento desprezível pelos costumes e convenções sociais da Grécia Antiga.

 

(1)  “Entre sem bater – Paulo Francis – Crítica e Respeito

(2) “Entre sem bater – Evandro Oliveira – O Parlapatão

(3) “Entre sem bater – Diógenes de Sinope – Minha Cabeça

 

Imagem: Entre sem Bater – Apeles de Kos – O Ultracrepidário

Nota do Autor

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