Entre sem bater – Joseph de Maistre – A Cegueira dos Homens

Joseph de Maistre era um católico fervoroso, contudo observou a sociedade de sua época com uma lente crítica e cética. Em meio às turbulências da Revolução Francesa, Maistre proferiu uma reflexão que se reproduz nos tempos atuais. Com efeito, a cegueira dos homens em nossa era está muito pior, mesmo que as possibilidades de conhecimento sejam maiores.

Este pensamento tem mais de dois séculos e é provável que seja ainda mais relevante do que nunca. Notadamente, se considerarmos o impacto da era digital e a explosão da informação a ignorância dominou o conhecimento.

Sociedade da Informação

Vivemos, inquestionavelmente, em uma que caracteriza-se pela abundância de informação sem precedentes, sem nenhum controle. A Internet e as tecnologias digitais nos permitem acessar um vasto mar de dados a qualquer momento. Teoricamente, a princípio, deveríamos ter informações melhores do que em qualquer outra época da história. No entanto, essa acessibilidade ao conhecimento não necessariamente se traduz em uma compreensão. Pelo contrário, a cegueira informacional e a superficialidade de entendimento se revelam através de uma ampla falsa sensação de saber.

A frase de Maistre sobre a “cegueira dos homens” reflete a paradoxal ignorância contemporânea. Em um mundo onde a informação está à distância de um clique, muitas pessoas exibem uma suprema preguiça mental⁽²⁾. Enfim, os humanos estão mais relutantes em engajar-se em debates profundos ou em questionar suas próprias crenças. A superficialidade substitui a profundidade, e a busca pelo conhecimento vira uma cegueira da gratificação instantânea de dados rápidos e fáceis.

O Narcisismo Digital

Maistre argumentava que a verdadeira ignorância provém da falta de autoconhecimento. Esta noção é extremamente pertinente hoje, quando as mídias sociais promovem uma cultura de narcisismo e autoexposição. As plataformas digitais incentivam a construção de identidades virtuais ideais de nós mesmos, em vez de reflexões honestas e introspectivas.

A obsessão com a autoimagem digital pode levar a uma desconexão profunda com o nosso verdadeiro eu. As pessoas estão mais preocupadas com quantos likes recebem do que com o entendimento genuíno de suas motivações e valores. Esse desvio de foco cria uma sociedade onde muitos pensam que conhecem mais sobre os algoritmos do que sobre suas mentes e corações.

Cegueira e Preguiça Mental

Como se não bastasse, outro aspecto da “cegueira” na citação de Maistre é a tendência crescente de evitar debates e discussões. Surpreendentemente, muitos usuários destas tecnologias se acham superiores, e se negam a debater sobre qualquer assunto relevante. É a atitude de “… não vi e não gostei …”^(*) ou “… já tenho opinião e não me importo com fatos …”. Desse modo, estes personagens criam perfis que alimentam, cada vez mais, a preguiça mental própria e daqueles que o cercam.

Em um tempo de opiniões divergentes e polarizações, as discussões podem rapidamente se transformar em confrontos hostis. Por isso, muitos optam por se esconder atrás de um véu de ignorância e cegueira a tudo, por conveniência. A preguiça mental também se manifesta na aceitação passiva de informações sem questionamento crítico ou reflexão profunda.

A cultura do cancelamento também contribui para essa evasão do debate. Em vez de engajar-se em discussões construtivas, as pessoas preferem silenciar, temendo represálias sociais. Essa atmosfera inibe o pensamento crítico e a troca de ideias, perpetuando a ignorância e a divisão.

O Conhecimento Superficial

A era da informação também trouxe consigo a ilusão da competência através do conhecimento superficial. Com uma quantidade imensa de dados disponíveis, é fácil para as pessoas acreditarem que sabem mais do que realmente sabem. A confiança, certamente sem fundamento, em seu próprio conhecimento pode levar a equívocos e deturpações de fatos. Esse fenômeno, conhecido como o Efeito Dunning-Kruger⁽³⁾, é amplamente visível em diversas esferas da sociedade, desde a política até a ciência.

Maistre, com sua crítica à cegueira dos homens, nos alerta sobre os perigos de um conhecimento superficial. Ele nos incentiva a buscar uma compreensão mais profunda e reflexiva, não apenas dos fatos ao nosso redor, mas de nós mesmos. Em outras palavras, não se livra de uma cegueira somente com acesso ao Dr. Google ou sabendo manusear um teclado de smartphone.

Pensamento Crítico

Para superar a cegueira, inclusive a mental, devemos adotar um enfoque mais profundo e reflexivo em nossa busca pelo conhecimento. Isso envolve, com toda a certeza, um compromisso com o autoconhecimento e a disposição para questionar nossas próprias crenças e preconceitos.

O pensamento crítico é essencial nesse processo e, atualmente, torna-se uma questão de sobrevivência e de saúde mental. Devemos aprender a analisar e avaliar a informação que recebemos, distinguindo entre dados confiáveis e desinformação. Além disso, devemos estar dispostos a engajar-nos em debates construtivos, ouvindo atentamente as perspectivas dos outros e considerando suas ideias com uma mente aberta.

Embora a origem do pensamento seja num período histórico muito diferente, certamente oferece uma sabedoria atemporal. A crítica à cegueira dos homens em sua era e permanece como um chamado à introspecção. Se, anteriormente, era uma busca por um conhecimento mais autêntico e profundo, atualmente, é uma necessidade básica.

Em suma, em um mundo de puta informação, onde a ignorância de si mesmo ainda é prevalente, muito mudou e precisa mudar. Desta forma, devemos lembrar que a sabedoria não reside apenas na acumulação de dados e informações. É preciso uma compreensão profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor, inclusive de questões longe das redes sociais.

A era digital, com todas as suas maravilhas tecnológicas, não deve nos desviar dessa busca fundamental. Em vez disso, devemos nos desafiar a usar essas ferramentas para promover um entendimento mais verdadeiro e uma conexão com a verdadeira humanidade.