Acidente
Se a descrição e tradução do que significa um acidente(*) é complexa, imagina-se que dizer que não foi acidente seja muito pior. Contudo, o que aconteceu em Mariana (MG) e expandiu-se até Regência (ES) tem muito de substantivos como crime e acidente.
Uma barragem da mineradora Samarco localizada no município de Mariana (MG), rompeu-se no dia 5 de novembro de 2015, deixando um rastro de 19 mortos. O maior desastre ambiental, não natural, do Brasil, quiçá do mundo, nos últimos tempos. Com toda a certeza, não foi somente pela força da natureza ou acidente natural evitável. Era a crônica de um sinistro que se anuncia a cada dia e a cada omissão, logo, não foi acidente, foi crime.
A revisão periódica deste texto é necessária, pois o esquecimento que a mídia perpetra, e as pessoas e comunidades atingidas são vítimas, é perverso. Todos os textos que já publicamos poderiam servir de um breve relato da crueldade com que as vítimas vivem desde então.
Por outro lado, a tragédia de Brumadinho recrudesceu o esquecimento de todos pelas vítimas de Mariana (MG) até Regência (ES).
Não foi Acidente – O Rastro
O “não acidente’ vai desde Mariana, passando pelos dilacerados distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, até a foz do Rio Doce. Em outras palavras, são algumas centenas de quilômetros de destruição até o Espírito Santo. Em suma, as alterações ambientais, devastação, vidas perdidas, precarização da forma de vida e trabalho vão além do imaginável. As vidas que perdemos em Bento e as tragédias pessoais de quem recebeu qualquer aviso a tempo, são imensuráveis, irrecuperáveis. E, como se não bastasse, não tem indenização financeira que pague pelo crime, que não foi acidente, e muitos defendem que foi obra do acaso.

Beto Rodrigues/Mariana – Autor: Rodney Costa
Existem muitas formas de tipificar o crime, mas advogados, regiamente pagos, fazem de tudo para mostrar que a tragédia não foi crime. Este tipo de desqualificação da tipificação é, sem dúvida, um crime dentro de outro crime maior.
Não foi Acidente – Tipificação
Posto que não foi acidente, foi crime contra a humanidade, contra o meio ambiente e a vida de habitantes de um estado (MG e ES). E, porque não dizer que foi contra todos os conacionais que renascem a cada tragédia natural.
Numa visão simplória, um crime doloso é aquele em que o suspeito agiu com intenção, ou seja, com algum tipo de premeditação. Por outro lado, o crime culposo, o autor ou atores, agem com imperícia, negligência ou imprudência. Analogamente ao motorista que bebe antes de dirigir; dá para tipificar facilmente o crime da Samarco, basta querer entender.
Portanto, seria necessário apurar se não foram os dois casos, uma tipificação por crime doloso e, em outros casos, por culposo.
Enfim, de qualquer maneira, não foi acidente, foi crime ou, como alguns mais inteligentes já perceberam, foram vários crimes.
País de desmemoriados
Vejo que a tragédia de Mariana não foi a primeira, e que, recentemente, outro crime parecido aconteceu em SP. Parece que os brasileiros ainda não se deram conta da extensão do crime cometido.
As empresas responsáveis (Samarco e suas controladoras- Vale e BHP) estão procrastinando, enquanto os efeitos do crime permanecerão por alguns anos. Elas vão negociando “acordo” para remendar um grande crime. E os brasileiros, guiados pela mídia, preferem BBB, produções cinematográficas, fofocas e boatos das manchetes da mídia marrom.
País de coniventes
Neste país, quem diria que uma das frases de “O Doutrinador” fica, a cada hora, minuto e segundo, mais realista em 180 graus.

O Doutrinador – Fora da Lei
É impossível e a “chibata” come solta contra quem é fora da lei. Ou seja, segundo critérios de polícias e seitas que se travestem de donos da verdade, mas não passam de castas de criminosos. Verdadeiras quadrilhas surgem no Congresso Nacional, nas Assembleias e Câmaras Municipais. E aqueles que tentam mostrar a realidade ou algum viés dos crimes que pululam por aí, viram os “fora da lei“.
Somos o país da impunidade e o crime de Mariana, de autoria da Samarco é exemplar. E os acionistas (VALE e BHP) vão se eximindo, procrastinando e fingindo que tudo está normal.
A horda da coniventes e vassalos, escondidos na sombra do bom-mocismo e caridade, que fizeram fortuna com a exploração do minério em Mariana, é enorme.
É assustador, por exemplo, a quantidade de profissionais (engenheiros, contadores, advogados, jornalistas etc.) que se omitem diante do brutal crime de Mariana. Ultrapassa qualquer limite da conivência, beira a cumplicidade e apoio à quadrilha de criminosos que pretende continuar se locupletando ou ajudando amigos a se locupletarem.
Não foi acidente
Isto, não é o Brasil. Isto é o que alguns brasileiros fazem com outros brasileiros. Dá muita raiva ver o estrago e crueldade para com milhares de pessoas. E o “esquecimento” conivente da maioria dos brasileiros que não sofreu diretamente com este crime.
É como disse uma das vítimas:
“Quem não esteve aqui não sabe o que estamos passando e como vamos viver daqui em diante, nem as pessoas daqui de Mariana“.
Certamente, o blog do advogado Bruno Carrazza ( Crimes Ambientais – Leis e Números ) é extremamente didático. Adicionalmente, com uma pequena dose de boa vontade, dá para perceber que a contumácia criminosa é o que define a postura destas mineradoras.
Em suma, a tragédia de Mariana, caiu numa espécie de esquecimento e desqualificação da condição de crime, com seus autores e mandantes impunes. E, com toda a certeza, as vítimas são sucumbindo ao cansaço e à morte, num número maior que os 18 daquele fatídico dia.
9 anos
Este evento trágico evidencia um problema que não se limita ao acaso, mas que emerge de negligências e irresponsabilidades. Adicionalmente, os interesses corporativos que priorizam o lucro sobre a segurança ambiental e humana são o objetivo de muitos acionistas. Desde que essa perspectiva é predominante, muitos especialistas e a sociedade em geral indicam que o ocorrido foi um crime.
Diversas ações tiveram anúncio e execução nos últimos anos para punir os responsáveis e reparar as vítimas. Contudo, o processo ainda enfrenta desafios e críticas pela lentidão, complexidade e subterfúgios.
Por outro lado, podemos dizer que algumas medidas até o momento merecem reflexões e até críticas.
1. Indenizações individuais e coletivas para as vítimas
Uma das primeiras e mais urgentes ações foi a busca pela compensação financeira para as vítimas do desastre. Desde o rompimento, a Samarco e suas controladoras, Vale e BHP Billiton, iniciaram indenizações para as famílias das vítimas fatais. Da mesma forma, aquelas que perderam suas casas, meios de subsistência e sofreram danos psicológicos receberam alguma assistência. No entanto, a aplicação de indenizações notabiliza-se pela demora, por disputas judiciais e questionamentos.
Em 2021, uma revisão do acordo de indenizações, com atualização de valores e maior agilidade nos processos provocou alvoroço. Os pagamentos visavam garantir que as vítimas, algumas das quais vivendo em condições precárias, teriam condições de vida dignas e amparo financeiro. O desequilíbrio estre as vítimas e suas necessidades são reais e persistem.
2. Criação da Fundação Renova para a recuperação ambiental e econômica
A Fundação Renova surgiu em 2016, com a missão de conduzir ações de compensação socioambiental. A entidade assumiu responsabilidades que vão desde a recuperação do rio Doce até a residência de casas e apoio aos moradores locais. Entretanto, sua atuação sofre críticas frequentes pela lentidão e parcialidade.
Este que vos escreve tem, pro exemplo, uma ação cuja submissão à Renova não teve nenhuma resposta ou explicação de não aceitação. Além disso, muitas propostas e até mesmo resultados demonstraram total falta de transparência e de efetividade. A Renova dá mostras de execução de projetos de replantio de vegetação nativa, monitoramento da qualidade da água e recuperação da biodiversidade. Apesar de suas limitações, até certo ponto questionáveis, a fundação representa uma tentativa de reparos a longo prazo. Por outro lado, virou alvo e pode ter sua extinção em breve pela falta de transparência de suas ações.
3. Reassentamento das comunidades destruídas
Um dos compromissos reforçados pela mineradora e pela Renova é o reassentamento das comunidades destruídas, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. As obras de reassentamento ocorreram apenas alguns anos após o desastre. É provável que os entraves burocráticos e conflitos sobre a segurança das vilas sejam motivos aceitáveis para muitos. Ainda hoje, algumas famílias aguardam a conclusão das casas. Esse processo busca não apenas devolver moradia aos atingidos, mas também reconstituir laços sociais e culturais das comunidades devastadas.
4. Programas de monitoramento e controle de barragens
Diante da tragédia, órgãos reguladores e o próprio governo brasileiro reforçaram as normas e fiscalizações de segurança para barragens de rejeitos em todo o país. A Agência Nacional de Mineração (ANM) passou a exigir a desativação de barragens com o mesmo tipo de estrutura que se rompeu em Mariana. Essas barragens, do tipo “a montante”, apresentam, inquestionavelmente, maior risco de colapso.
Esse programa de monitoramento busca evitar tragédias semelhantes, como o rompimento da barragem de Brumadinho, que aconteceu em 2019. Embora algumas mudanças sejam positivas, existem críticas sobre as fiscalizações insuficientes e ameaças de novas tragédias. Entretanto, pode criar muita confusão como aconteceu em Barão de Cocais com um alerta indevido que aterrorizou a cidade.
5. Processos criminais contra executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton
Em 2016, o Ministério Público Federal apresentou denúncias contra 21 executivos das empresas responsáveis pelos crimes. Receberam acusações de crimes ambientais e homicídios, além de ações de indenização e reparos. Embora os processos enfrentem diversos recursos e manobras jurídicas, eles são um esforço para responsabilizar criminalmente diversos entes. Em outras palavras, aqueles (pessoas e empresas) que, em posição de ação ou omissão, poderiam evitar o desastre, merecem punição.
As investigações e denúncias renovam-se várias vezes ao longo dos anos. Surpreendentemente, muitos dos réus conseguiram reverter acusações, o que gerou frustração nas comunidades e na sociedade em geral.
Ainda que a execução de muitas dessas ações enfrente obstáculos e críticas, elas representam passos importantes em termos de responsabilização. O desastre de Mariana deixou um impacto irreparável na vida das vítimas e no ecossistema brasileiro. Entretanto, o seu legado maligno pode ajudar a construir um setor de mineração mais responsável e seguro. Para tanto, é fundamental que as ações de resistência e segurança continuem sendo inovadoras.
Devemos, portanto, lembrar sempre que a justiça não é uma opção, mas uma obrigação para com os sobreviventes e as gerações futuras.
P. S.
(*) A utilização de IA para apoio aos textos de “Entre Sem Bater” representa, normalmente, de 20 a 30 por cento dos textos. É provável que este, mais polêmico, atingiu uns 40%.
acidente
A forma acidente pode ser [primeira pessoa singular do presente do subjuntivo de acidentar], [terceira pessoa singular do imperativo de acidentar], [terceira pessoa singular do presente do subjuntivo de acidentar] ou [substantivo masculino].
acidente( a·ci·den·te )substantivo masculino
1. Casualidade ou fato não essencial.
2. Acontecimento imprevisto. = OCORRÊNCIA
3. Acontecimento negativo inesperado, que provoca danos, prejuízos, feridos ou mortos (ex.: acidente de carro; acidente de trabalho; acidente esportivo).
4. Indisposição repentina que priva de sentido ou de movimento.
5. Irregularidade do terreno, quebra, ondulação, fragosidade.
6. [Gramática] Flexão.
7. [Música] Sinal gráfico que precede uma nota na pauta e que modifica a sua altura (ex.: existem cinco acidentes: sustenido, dobrado sustenido, bemol, dobrado bemole bequadro).
8. [Teologia] Figura, cor, sabor e cheiro que fica do pão e do vinho após a sua consagração. (Mais usado no plural.)
Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2024.
- Este texto é, sobretudo, como está descrito na Apresentação do Autor. Multidisciplinar, polêmico e verdadeiro. Servirá como artigo de conteúdo estrutural para o tema do Crime de Mariana.
- Este texto teve sua publicação, originalmente, antes do crime de Brumadinho. Contudo, a tragédia de Mariana caiu quase no limbo, pela repercussão e mortes de Brumadinho. A versão original mantém-se sem contaminação pelos crimes da VALE em outras localidades de Minas Gerais.
Revisão e atualização em 4 de novembro de 2024
Fotografias: Reprodução “O Globo” e Rodney Costa
Nota do Autor
Reitero, dentre outras, o pedido feito em muitos textos deste blog e presente na página de “Advertências“.
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