Entre sem Bater
Este é um texto da série “Entre sem bater” (← Uma leitura, acima de tudo, “obrigatória”). A cada texto, uma frase, citação ou similar, que nos levem a refletir. É provável que muitas destas frases sejam do conhecimento dos leitores, mas deixaremos que cada um se aproprie delas. Entretanto, algumas frases e seus autores podem surpreender a maioria dos leitores. José Maria Alkmin, como um bom mineiro, tinha suas frases emblemáticas, mas, de “Fato“, era muito escorregadio.
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As frases com publicação aqui têm as mais diversas origens. Com toda a certeza, algumas delas estarão com autoria errada e sem autor com definição. Assim sendo, contamos com a colaboração de todos de boa vontade, para indicar as correções.
Na maioria dos casos, são frases provocativas e que, surpreendentemente, nos dizem muito em nosso cotidiano. Quando for uma palavra somente, traremos sua definição. Por isso, em caso de termos ou expressões peculiares, oferecemos uma versão particular. Os comentários em todas as redes sociais podem ter suas respostas em cada rede e/ou com reprodução neste Blog.
José Maria Alckmin
Políticos mineiros são autores de frases que se tornaram famosas no anedotário da vida política tupiniquim. Políticos que transitaram do governo JK ao regime ditatorial militar, mantendo-se vivos, merecem alguns senões. Algumas coisas, de fato, são curiosas e misteriosas, como em frases sobre democracia relativa(1). Em outros casos como, por exemplo, na busca de uma caricatura do ex-vicepresidente de Castelo Branco é uma busca ao tesouro. Frases como a do político mineiro recebem, ocasionalmente, a classificação de humor, mesmo que seja de mau humor, é tétrico. Compreensível, pois, quem seria o maluco a fazer uma caricatura de um vice da ditadura?
José Maria Alkmin (Bocaiúva, 11 de junho de 1901 — Belo Horizonte, 22 de abril de 1974) foi um político brasileiro. Foi o 15.º vice-presidente do Brasil entre 15 de abril de 1964 e 15 de março de 1967, no governo do General Humberto de Alencar Castelo Branco. No ano de 1964, aliou-se ao governador de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, nas articulações que confluíram para a derrubada de João Goulart no mês de abril. José Maria Alkmin foi uma das personalidades reais retratadas na minissérie brasileira JK, levada ao ar pela Rede Globo. O advogado e político foi interpretado pelos atores Ranieri Gonzalez, na fase jovem, e Paulo Betti, na segunda fase. Na vida real era primo do atual vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin.
Wikipédia (português)
Do Fato
A palavra fato é uma derivação do latim Factum, na ideia de realização, façanha. Numa definição de dicionário, pode-se dizer que é: “Acontecimento acabado; evento, ocorrência”. Pode expressar, na maioria dos casos, “Evento cuja realidade tem comprovação; verdade, realidade”.
Desse modo, é um contrassenso uma expressão como “verdade do fato“(2), pois poderíamos considerar uma figura de linguagem absurda (pleonasmo).
Na era digital, a noção de verdade soltou de suas amarras, flutuando em um mar turbulento de informações contraditórias e opiniões falsas. A explosão das redes sociais, enquanto uma ferramenta de conexão global sem precedentes, se tornou um terreno fértil para as versões. Certamente, estamos sofrendo um bombardeio de versões e, na maioria dos casos, sem comprovação (fact check).
Antes da ascensão das redes sociais, a definição de um fato tinha confirmação a partir de fontes confiáveis e métodos de verificação robustos. Jornais , emissoras de rádio e TV e instituições acadêmicas eram os guardiões da verdade. As informações passavam por um escrutínio rigoroso antes de irem para divulgação ao público. Atualmente, até estes canais de comunicação publicam mentiras como se fossem fatos.
Redes Sociais
Nesse ínterim, após o surgimento das redes sociais, essa paisagem mudou drasticamente e parece que não foi, em alguns aspectos, para melhor. É fato que agora temos à nossa disposição muito mais informação e com rapidez inimaginável a trinta anos atrás. Contudo, hoje em dia, qualquer pessoa com acesso à Internet se autoproclama um “especialista” e dissemina suas opiniões sem filtros ou verificações. Assim sendo, a viralização tem mais valor do que a veracidade de qualquer coisa que aparece nas redes sociais. Em suma, as narrativas que despertam emoções intensas superam os fatos consubstanciados em termos de alcance e impacto.
A rapidez com que as informações se espalham nas redes sociais também contribui para a confusão em torno da definição de um fato. Uma notícia falsa se espalha como fogo na palha seca em questão de segundos, antes de qualquer tentativa de verificação. E mesmo que a falsidade tenha uma demonstração cabal, a semente da dúvida na mente das pessoas mina a confiança na verdade(3).
Além disso, as redes sociais criaram bolhas de filtragem, onde as pessoas preferem aquilo que confirma as suas crenças preexistentes. Por isso a polarização sobre qualquer tema dificulta ainda mais o consenso sobre o que constitui um fato. Onde antes havia uma base comum de conhecimento, agora existem múltiplas realidades subjetivas ou versões improváveis.
Da Versão
Enfim, a busca pela verdade parece ser uma jornada interminável com muitas versões, mas será que estamos perseguindo uma quimera?
Com toda a certeza, a ascensão das deep fakes, a nossa predisposição para acreditar no que queremos ouvir, lança dúvida sobre a ideia de fatos. Neste mundo digital, onde a realidade é uma ilusão, é difícil discernir onde termina a verdade e começa a ficção. Afinal, os fatos não são uma expressão objetiva da realidade; eles são narrativas do nosso cotidiano.
As deep fakes exemplificam essa verdade de maneira assustadora e demonstram que as versões tornaram-se mais fortes. Elas (versões) nos mostram que a linha entre realidade e ficção está se tornando cada vez mais tênue. As tecnologias permitem criar vídeos e áudios falsos que são praticamente indistinguíveis de suas contrapartes genuínas. Essas ferramentas deixam que qualquer pessoa com acesso à tecnologia manipule a realidade de maneiras que antes eram impensáveis. A veracidade de um evento agora pode sofrer contestação, pois uma narrativa convincente, em torno de uma mentira com hábil manipulação é quase real.
Personagens tóxicos
Surpreendentemente, mesmo sem a intervenção da tecnologia, os fatos sujeitam-se à manipulação através das narrativas que os acompanham. A forma como um evento apresenta-se ao público, a seleção de detalhes, tudo isso influencia a percepção da verdade. Políticos, jornalistas e figuras de autoridade muitas vezes usam essa habilidade para moldar a opinião pública, de acordo com seus interesses. Ah! e não podemos e nem devemos menosprezar as figuras tóxicas que surgiram: coaches, influencers, top voices.
Como se não bastasse, nossas próprias predisposições cognitivas desempenham um papel crucial na forma como percebemos um único fato. O viés de confirmação nos leva a validar nossas crenças preexistentes, enquanto descartamos ou ignoramos, solenemente, o contraditório. Isso cria bolhas de filtro onde as pessoas visualizam apenas versões da verdade que confirmam suas visões limítrofes de mundo.
Fatos x Versões
Algumas frases sobre a verdade, além da frase de José Maria Alkmin, relacionando com versões e fatos, são interessantes, senão vejamos:
“Fatos são como bonecos de ventríloquo. Sentados no colo de um sábio, podem ser levados a dizer coisas sábias; se não, não dizem nada ou dizem asneiras ou expressam o mais puro diabolismo.” – Aldous Huxley
“Quando a lenda se torna um fato, publicamos a lenda.” – James Bellah e Willis Goldbeck
“Não há fatos, só interpretações.” Nietzsche
Diante desse cenário, que antes era somente de teorias, a ideia de que fatos objetivos prevalecem, parece cada vez mais ilusória. O que chamamos de “fato” é, na verdade, uma construção de narrativa complexas, que sofre influência de uma miríade de fatores. Os fatos, com efeito, dependem não apenas da realidade em si, mas também da narrativa que os envolve e da interpretação dos indivíduos.
Portanto, talvez seja hora de repensarmos nossa relação com a verdade, com este ou aquele fato e com o que narram as pessoas. Em um mundo de fatos maleáveis e narrativas poderosas, devemos ser mais críticos e cautelosos em relação à informação que consumimos. Devemos, outrossim, questionar não apenas os eventos em si, mas também as histórias que se apresentam sobre eles. Somente assim podemos começar a desvendar as complexidades da verdade em um mundo cada vez mais incerto.
Em meio a esse caos de desinformação, a busca pela verdade objetiva se tornou uma tarefa monumental. O que resta é a aridez da incerteza, onde os fatos perdem espaço para narrativas convincentes e agendas ocultas. Nesse ambiente, a definição de um fato perdeu-se completamente, afogando-se num mar de versões sem comprovação e opiniões polarizadas.
Em suma, a verdade básica(4) está lá fora, mas encontrar o caminho através do labirinto digital é uma jornada cada vez mais desafiadora. Depois que o José Maria Alkmin serviu a dois senhores, tornou-se um bom contador de versões e escondedor de fatos.
“Amanhã tem mais …”
P. S.
(*) É importante e necessário destacar que a frase de Alkmin, em nenhuma hipótese, pode ter alusão a outras acepções da palavra fato.
(1) “Entre Sem Bater – Ernesto Geisel – Democracia Relativa”
(2) “Entre Sem Bater – Cesare Beccaria – Verdade do Fato”
(3) “Entre Sem Bater – Bertolt Brecht – A Verdade”
(4) “Entre Sem Bater – Md House – Verdade Básica”
Imagem: Entre sem bater – José Maria Alkmin – Do Fato e da Versão
Nota do Autor
Reitero, dentre outras, o pedido feito em muitos textos deste blog e presente na página de “Advertências“.
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