Democracia Guiada
Escrevi, anteriormente, sobre centenas de temas e um deles foi sobre como é frágil e mítica a nossa democracia. A questão que envolveu o congolês Moïse, no Rio de Janeiro, me remeteu, à princípio, ao primeiro episódio da Série Black Mirror(1). Com toda a certeza, o episódio da série expõe uma ferida que achamos que não pertence à nossa sociedade. Se bem que, para milhões de habitantes que frequentam as redes sociais, nossa realidade está nas pontas dos dedinhos e nos smartphones.
Vivemos, inquestionavelmente, numa democracia guiada e, assim sendo, o direcionamento é para que a opinião pública defina o veredito e qualquer ato, via a mídia. Desse modo, não temos uma democracia racial, étnica ou social, e os preconceitos estão logo ali, em todas as plataformas.
Moïse e a falsa democracia
Democracia Racial
É essencial, sobretudo nas condições que estamos vivendo no país, que algumas coisas estejam no seu devido lugar.
Em primeiro lugar, é falsa a ideia de que o Brasil é a nação mais democrática do ponto de vista racial(2). Como se não bastasse o país ser uma das maiores aberrações na distribuição de renda, a democracia social nunca existiu.
Desse modo, o brasileiro mediano não tem a mínima noção do papel de capitão-do-mato social e étnico que pratica. Em outras palavras, renega sua ascendência e pensa que agradando a “Casa Grande” obtém habeas corpus da “Senzala“.
Escravidão
O Brasil tem se notabilizado por abrigar trabalhadores analogamente aos tempos da escravidão. Jogador de futebol, após a implementação da Lei Pelé, ousa dizer que é “como um escravo”. Este absurdo teve registro nas palavras de um jogador, que chegou a receber mais de meio milhão de reais por mês. Absurdo? Certamente, na cabecinha oca deste jogador, não é absurdo. Desse modo, temos uma escravidão manipulada por agentes e empresários que usam força de trabalho alheia para tornarem-se milionários.
Nesse ínterim, vemos operações da Polícia, Ministério Público, Ministério do Trabalho desnudando grandes empresas e trabalho escravo de verdade. E as vítimas mal conseguem ressarcimento para voltarem para suas casas.
Os abusos e a impunidade têm comprovação quando completamos quase 20 anos do assassinato de fiscais do trabalho. Por que e por quem aqueles fiscais tiveram morte brutal? Por multarem e tentarem processar fazendeiros do interior de Minas Gerais que mantinham escravos em suas terras. Simplesmente, morreram de maneira impiedosa e cruel, e os assassinos continuam impunes.
O Brasil tem abrigado africanos e sul-americanos que fogem das condições de seus países e ficam, aqui, em situação pior. Venezuelanos são uma raça sub-humana, para muitos brasileiros que se acham superiores. Adicionalmente, até estrangeiros com qualificação, como os cubanos, sofrem apenas pela nação que nasceram.
É comum, com a condescendência da mídia, da polícia e autoridades, vermos absurdos e não fazermos nada. Por exemplo, bolivianos, haitianos e paraguaios aparecem nas redes sociais como imigrantes ilegais. Contudo, na realidade são escravos de capitães-do-mato e exploradores de humanos.
Moïse e seu crime
Moïse cometeu seu primeiro crime ao fugir de seu país. Ele e mais cinco milhões que não aguentaram os crimes da República Democrática do Congo. É compreensível que o “democrática” desta república esteja deslocado. Uma nação com pouco mais de 60 anos de independência que esteve escravizada pela Bélgica e tem muitas tribos e confrontos étnicos.
A partir daí, Moïse cometeu vários crimes, alguns deles “bárbaros” como o de reivindicar o dinheiro pelos dias que trabalhou. Certamente, poucos se lembram da “flexibilização da CLT” e desmonte de sindicatos! Como se não bastasse, no Rio de Janeiro, a unidade da federação mais “democrática e aberta” à miscigenação racial. #SQN.
Black Mirror Tupiniquim
Antes que alguém se pergunte sobre o que isso tem a ver com o episódio Black Mirror, eu esclareço.
No episódio, um personagem político sofre forte coação para fazer algo condenável, em público. O povo do país, ao invés de se rebelar, fica diante das redes sociais, vendo um crime acontecer, torcendo e “votando”. Contudo, em Pindorama, grande parte dos brasileiros gasta dinheiro para votar em programas como BBB. Ou, por outro lado, preferem parar diante de um crime em curso, no meio da rua, para filmar e publicar nas redes sociais.
Hipocrisia
Os brasileiros, em sua maioria, dão mostra que nunca quiseram, de verdade, defender uma democracia social, étnica ou racial.
Ao fim da história do Moïse todos participarão dela, por ação ou omissão. Os autores do crime dizem que “não tínhamos intenção de matar“. Brigam com as imagens que circulam nas redes sociais, com o obsequioso apoio de boa parcela da sociedade brasileira. É provável que o lema “bandido bom ...”, sofreu uma conversão complementar para “imigrante bom, é imigrante …”
A hipocrisia campeia e não se vê jogadores de futebol, artistas, autoridades, mídia oficial, personagens brancos ou não, se posicionando de forma correta.
O assassinato do congolês Moïse Kabamgabe é, tão somente, o retrato da nossa sociedade de intolerância, racial, étnica e social.
Em suma, foi como se o capitão-do-mato pegasse um “negro fujão“, colocasse no tronco e açoitasse, com brancos e negros assistindo a tudo, inertes.
O mito sobrevive
O mito da democracia racial pode, facilmente, encabeçar a lista das fake news que deram certo no Brasil. E nem pensem que a obra(3) de Gilberto Freyre teve alguma leitura dos filósofos de redes sociais rasteiras.
Com toda a certeza, muitos que reproduzem frases do sociólogo, nunca leram nem dez páginas da obra, ou pensaram sobre o contexto dela.
As redes sociais deram palanques para um monte de abutres, que filmam uma morte cruel, mas não conseguem abstrair nenhum ensinamento. Surpreendentemente, vemos poucos textos ousados colocando o dedo na ferida, e os comentários, quando existem, revelam que o mito da democracia racial persiste, e cresce.
Estamos numa guerra em vão. Uma guerra em que não conhecemos nem quem está conosco na trincheira. Parece ruim? Acredite que vai ficar muito pior. E não será pelas eleições de cargos majoritários que teremos problemas mais graves. As “cortinas de fumaça” neste ano vão proporcionar as eleições mais sujas da nossa história. Eleições totalmente fora do controle do que imaginam os áulicos do Judiciário.
É “… com STF e tudo…” que vamos afundando cada vez mais.
(1) “Hino Nacional – Black Mirror“
(2) “Democracia racial: Fato ou Fake”
(3) “Casa-Grande & Senzala”
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Imagem: Reprodução Internet
Nota do Autor
Reitero, dentre outras, o pedido feito em muitos textos deste blog e presente na página de “Advertências“.
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