Paisagem na Janela - Clube da Esquina

Paisagem na janela e a indigna nação

Letra e música

Música é, em síntese, uma expressão artística universal, do bem até quando trata de assuntos espinhosos, politicamente incorretos e afins. Letras de músicas já levaram artistas à prisão, assim como algumas religiões mandam matar quem escreve livros. Alguns poemas, de fato, são colocados em música com tamanha propriedade que assusta, mesmo que tomemos emprestadas as estrofes. As músicas “Cálice“, “Inútil“, “In(dig)nação” e “Paisagem na Janela” certamente representam aquilo que se tornou nosso país, numa espécie de premonição ou repetição da farsa.

Desse modo, seria possível nos apropriarmos de estrofes destas canções e muito além da música e seu arranjo, utilizar as letras para explicar “o mundo”. O grande risco, portanto, seria sofrer um processo do artista se colocarmos a música de fundo num texto, ainda bem que textos em Blog não usam música de fundo. Escolhi estas quatro canções por conta do posicionamento de seus autores, seja pela ação ou omissão.

Chico Buarque, Roger do Ultraje a Rigor, os Skank e Fernando Brant são compositores e intérpretes que disseram muito a algumas gerações, certamente, hoje não dizem mais. Algumas pessoas que não têm preguiça de ler meus textos, às vezes, ficam sem entender as conexões que faço entre literatura e música. Certamente, fica um pouco mais complexo do que a simples leitura de textos em microblogs como o Twitter e requer algum entendimento de contexto.

Enfim, “Paisagem na Janela” é uma destas oportunidades que não podemos deixar passar.

Paisagem na Janela

Surpreendentemente, vejo artistas dando uma interpretação diferente de suas músicas quando elas são utilizadas para algo que envolve política. Percebo, com efeito, que estes artistas querem passar a ideia de “isentos” quando não querem assumir a interpretação dada a uma estrofe de sua autoria, Indiscutivelmente, como um poema, um livro de ficção, a interpretação do artista ao compor pode não ser àquela que pessoas que vieram depois fazem.

Assim sendo, tomemos dois exemplos opostos e a atual política nacional.

Inútil (1983)

Roger do Ultraje a Rigor teve participação, sabe-se lá em qual proporção, na letra de “Inútil“.

“A gente não sabemos escolher presidente

Tem gringo pensando que nóis é indigente

Inútil!
A gente somos inútil”

Se bem que, os tempos eram de abertura política (pós ditadura), era permitido aos artistas se expressarem mais diretamente, e relatando as próprias experiências. Tomemos, com toda a certeza, os erros de português como licenças poéticas, e é incompreensível a posição do Roger em defesa do atual Presidente da República. Demonstra que ele sabia o que estava dizendo, colocou numa música e agora renega o que disse, e pior aponta o dedinho sujo na direção dos outros.

Cálice (1978)

Chico Buarque é autor de vários poemas musicados que reproduzem o cenário político da época da construção e divulgação da música. Ao contrário do Ultraje a Rigor, Chico Buarque tinha que escrever certas coisas com pseudônimo. Cálice foi a forma e a palavra que o autor utilizou para mostrar sua indignação, já que o regime golpista em que vivíamos era censor e autoritário.

“…
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

O poema Cálice é completo, reduzi a uma única estrofe por questões meramente redacionais, assim sendo, recomendo ler o poema e ouvir a música. Entendedores, certamente entenderão e neófitos não buscarão um significado nas palavras., é o fim.

A Banda

Nesse ínterim, estamos vendo a banda passar e estamos inertes, como uma mosca sem asas, a mesma referenciada no texto em que me apropriei da estrofe da música In(dig)nação (2001)(1). Fiz uma transliteração do título da música para tentar mostrar o quanto nossa indignação nos torna minúsculos ante a nação que nunca se indigna.

Paisagem na Janela” (1972) cuja letra é de Fernando Brant é daquelas que o autor e o intérprete não imaginariam que cinquenta anos depois a música seria inspiradora. A estrofe a seguir, pelo menos no meu caso, cabe como uma luva pois não foi por falta de aviso e textos, mesmo que difíceis de ler.

Mensageiro natural de coisas naturais
Quando eu falava dessas cores mórbidas
idem desses homens sórdidos
idem desse temporal
Você não escutou

Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal
Você não quer acreditar

Em suma, minha indignação é uma mosca sem asas, que ultrapassa a janela somente através de meu teclado e não ecoa além da “primeira milha”, ou nem isso. Contudo, estamos vendo a banda passar, inertes e calados, vendo aqueles inúteis escolherem o presidente, e defenderem insanidades como tem acontecido em lives e depoimentos coletivos.

É provável que Brant, à época, estivesse escrevendo “cores mórbidas e homens sórdidos” para associar a algum “verde-oliva” tenebroso e profusão de homens defendendo armas para matar.

Enfim, é como diria um falecido professor que tive: “… meus meninos, eu avisei muito tempo atrás…”.

 

(1) “Indigna Nação – Não foi acidente

(*) Revisado e atualizado em outubro de 2021

 

Imagem: Reprodução capa de disco “Clube da Esquina

Nota do Autor

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Agradeço a compreensão de todos e compreendo os que acham que escrevo coisas difíceis de entender, é parte do “jogo”.

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